Podemos considerar a pandemia que nos atinge nos dias de hoje como um dos principais fatores responsáveis por mostrar à sociedade algo que estava diante de nossos olhos desde muito tempo: a realidade que cada um dos brasileiros vive não é a mesma. Pelo contrário, elas podem ser bastante distintas e extremamente desiguais.

A cada dia, com as novas notícias sobre a Covid-19, podemos notar que, no país em que vivemos, existe uma tremenda e gritante desigualdade social que nos acompanha há séculos. A pandemia do coronavírus desencadeou novos desafios para o mundo inteiro, porém, eles afetam a sociedade em diferentes intensidades.

Ao contrário do que aconteceu com a parcela mais rica da população, que não tem tantas preocupações em relação às adaptações que a situação atual requer de toda a sociedade, a pandemia trouxe medo e aflição para os trabalhadores informais brasileiros, que representam mais da metade da força produtiva do Brasil, sendo assim os mais prejudicados nesse cenário. Por causa do isolamento e das medidas exigidas para combater o coronavírus, a vida deles, que já era instável e precária, se torna ainda mais árdua, pois a maioria é obrigada a quebrar o isolamento e continuar trabalhando, se expondo, assim, aos riscos de contrair o vírus, enquanto outros são dispensados sem receber nenhum pagamento. Uma das categorias que se encontra nessa posição é a das empregadas domésticas.

Em toda a América Latina, a pandemia do coronavírus mudou a vida de milhões de empregadas domésticas que vivem na parcela da sociedade em que a realidade presenciada diante do que estamos vivendo acarreta a constante incerteza sobre como pagarão o aluguel e alimentarão suas famílias no fim do mês.

A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e a Organização Themis afirmam que apesar do fato de que a exposição de qualquer pessoa à pandemia ofereça riscos, a situação dessas empregadas domésticas conta com agravantes como o uso de transporte público, o que as inclui em uma categoria de grande disseminação da doença. Para aquelas que vivem em comunidades com becos fechados, sem saneamento básico ou com abastecimento irregular de água, lado a lado com centenas de vizinhos em igual situação de exclusão social, manter distanciamento e seguir as orientações de higiene são tarefas difíceis. A imagem que o Brasil projeta no espelho nem sempre é a mais agradável de se ver. Junto a isso, permanece a preocupação com aquelas trabalhadoras que, por motivos financeiros, não podem deixar trabalhar.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o trabalho doméstico no Brasil bateu o recorde em 2019, chegando a 6,3 milhões de pessoas e de acordo com o Sindicato das Domésticas da Paraíba, as diaristas são as mais prejudicadas com a falta de direitos, o que as torna ainda mais lesadas/afetadas negativamente diante da pandemia do coronavírus.

Dentre os escassos direitos possuídos pelas trabalhadoras domésticas, estabelece-se que, caso a empregada doméstica registrada esteja com sintomas de gripe, ela deve ficar em casa até que esteja curada, mesmo sem a confirmação da doença. O empregador e empregada podem negociar uma licença remunerada para que ela continue a receber durante a doença. Caso queira formalizar, é preciso entrar no INSS com pedido de licença por motivo de saúde. O empregador banca os pagamentos por quinze dias e, após esse período, o pagamento fica a cargo do governo. Para a empregada que não for registrada, a recomendação do Ministério da Saúde é que ela fique em casa até estar curada. Neste caso, não existe legislação que obrigue o empregador a manter os pagamentos durante a recuperação. Outro direito traz a questão da opção da empregada de poder ou não exigir ficar em casa e receber por isso, mesmo sem sintomas. Se a situação for com a trabalhadora registrada, o empregador não é obrigado a manter o contrato ou a pagar pela exigência da empregada longe do posto sem que ela tenha os sintomas do vírus. Apesar disso, a empregada pode se recusar a prestar o serviço para evitar o contágio. O ideal, de acordo especialistas, é manter o diálogo e chegar a um consenso para formular uma licença remunerada que seria negociada diretamente entre empregador e empregada. Por outro lado, a empregada sem registro ou diarista vai depender da solidariedade e do empregador para chegar a um acordo.

“Ela [a empregadora] disse que eu tenho o livre arbítrio para vir ou não, e que se eu quisesse ir de carro poderia deixar na sua garagem. Ela me deixou à vontade, mas se eu não vou, não recebo", explica a diarista Márcia (nome fictício). "Em outro lugar que eu trabalho, nas segundas e sextas, falaram que vão me dispensar. Mas disseram que não tinham como me pagar.” complementa. Outro exemplo é a situação de Ailde de Oliveira Dourado, mãe solteira de sete filhos, que trabalhava três dias por semana, limpando um apartamento de luxo antes da pandemia, mas seu empregador a dispensou e, sem pagar os R$ 1.000 por mês que recebia, agora ela não consegue pagar pelo aluguel de R$ 500 da casa de dois quartos onde mora.

Sem licença remunerada ou assistência do governo, essas mulheres ficam dependentes de seus empregadores. A primeira pessoa a morrer de coronavírus no Rio de Janeiro, e a quinta do país, foi uma mulher de 63 anos que trabalhava como diarista havia décadas no Leblon, o bairro mais caro do Brasil. O metro quadrado na região custa em média R$ 21 mil. Após passado o Carnaval na Itália, seu chefe permitiu que a mulher voltasse ao trabalho mesmo sem informá-la de que estava doente e que aguardava os resultados do teste de Covid-19. O empregador se recuperou e a empregada doméstica, infelizmente, faleceu.

Podemos levar em consideração o fato de que o sistema de proteção social brasileiro não protege trabalhadores informais. "Ele segue muito vinculado ao mercado de trabalho e supõe condições econômicas normais”, explica o sociólogo Pedro H.G. Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA) e especialista em desigualdade social. “Esse sistema”, continua ele, “não reagiu bem à crise econômica dos últimos anos, não havendo nada automático que sirva para diminuir o sofrimento e a vulnerabilidade dos mais pobres e trabalhadores informais”.

Uma crise serve para fazer um país se olhar no espelho. A pandemia do coronavírus vem mostrando, entre muitas outras coisas, como trabalhadores informais ou temporários, além de moradores de favelas, são os mais favoráveis a serem as principais vítimas da Covid-19 pelo aspecto da saúde ou pelo lado econômico.

Simultaneamente, surgiu um movimento de pessoas nas redes sociais para fortalecer a importância da dispensa do trabalho, mantendo a remuneração das empregadas domésticas quando possível. Não ter um contrato de trabalho e pouca proteção social significa também depender de solidariedade e generosidade em situações como essa.

Quando Juliana França, professora e atriz no Rio de Janeiro, viu que sua mãe de 57 anos e sua madrinha de 75 anos ainda estavam trabalhando, apesar da pandemia, decidiu iniciar uma campanha on-line chamada “Pela vida de nossas mães”. Ela reuniu outros filhos de trabalhadoras domésticas para exigir que suas mães tivessem licença remunerada e conectou as que estavam sem trabalho a doadores. Desde meados de março, 11 trabalhadores foram conectados a doadores e outros 42 se inscreveram.

Em Paraisópolis, a líder comunitária Rejane Santos criou um programa semelhante para ajudar os trabalhadores domésticos desempregados da favela. Intitulada “Adote uma Diarista”. A iniciativa patrocinada por doadores fornece alimentos, itens de higiene pessoal e R$ 300 por mês durante três meses para mulheres que perderam o emprego por causa da pandemia. Seu objetivo era atingir 500 mulheres. Mil pessoas se inscreveram em três semanas.

De acordo com as trabalhadoras, o dia a dia das empregadas domésticas ainda guarda a herança cultural escravocrata brasileira, que as colocam em um patamar de desigualdade acentuada em relação às demais categorias no que diz respeito aos direitos, dentre eles o da exploração e exposição a riscos extremos, como acontece agora com a pandemia do coronavírus. “Reconhecimento de verdade é respeitar os direitos, dar valor ao trabalho. Queremos reconhecimento do nosso trabalho, do nosso valor e dos nossos direitos, respeito como pessoa.”, afirma a trabalhadora doméstica, Cleide Pereira. O caminho, que não tem sido fácil para elas até agora, ainda requer muita luta e conscientização da sociedade, em especial daqueles que as contratam, para os direitos, inclusive à vida, sejam respeitados.

A orientação geral é clara: fique em casa. Esse é um método efetivo de reduzir o risco de contrair ou contaminar outra pessoa com o coronavírus em meio à pandemia. Se essa regra vale para você, vale também para seus empregados domésticos.

A empatia é a melhor prevenção.

Clarissa Gusmão

a

[]