por Anderson Pinheiro

Professor de Artes Visuais do IFPE-Olinda

Pois a arte é infância. 

Arte significa não saber que o mundo já é, 

e fazer um.

(Rainer Maria Rilke, 1875-1926)

Um dia, minha filha esqueceu um fantoche na escola.

Ela fez a atividade usando pedaços de feltro, canetas e lantejoulas coloridas e muita criatividade.

Queria voltar, mas já não havia ninguém que pudesse verificar se a produção ainda estava onde deixou. Era noite. Expliquei que poderíamos fazer outro em casa. Tínhamos material e daríamos um jeito. Ela ficou triste; disse que não tinha como fazer igual ao que fez na escola. Havia naquela produção artística elementos que eu não poderia repor por mais que acreditasse que tínhamos os mesmos materiais.

Depois de um dia longo - eu estava cansado e não queria argumentar tanto - tentei falar com alguém da escola e o retorno foi que, no dia seguinte, alguém iria procurar e separar o fantoche. Expliquei para minha filha o ocorrido e seguimos para casa. Naquele momento, não havia mais o que fazer. Só aguardar.

No trajeto para casa, fiquei pensando que, apesar de tudo que eu poderia oferecer, e talvez fosse mesmo um material diferente, por que para ela era importante recuperar aquele brinquedo que ela criou?

No dia seguinte, o brinquedo estava lá, como se tivesse certeza de que ela voltaria para resgatá-lo. Ficou feliz e realizada; me deu um abraço intenso e pediu que eu o guardasse. Tornei-me guardião daquela produção artística e, observando atentamente, tive a certeza de que não teria realmente como eu o refazer. 

O objeto artístico criado por minha criança era único. Estava carregado de memórias e histórias desde o momento em que ela selecionou, organizou, estruturou e produziu aquele artefato único, repleto de todos os aprendizados que ela acumulou desde a educação infantil, experimentando e se expressando com diferentes materiais, ferramentas e suportes, até a idade em que se encontrava naquele momento. E essa transformação, espero, seguirá sendo transdisciplinar durante todo o trajeto escolar e de vida dela.

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Assim como nessa ocasião em que quase lidei como trivial, em tantas outras situações, tratamos essas produções imagéticas como se fossem menos importantes. Repetimos ou ouvimos palavras leves como o vento, logo, sem o peso da importância, como: “Olha só que linda esta casa que ela pintou!”; “Veja que perfeita esta borboleta com papéis colados!”; “Como este desenho mostrando um cachorro parece real!”; “Uau, parece um monstro assustador!”; “Nossa, como você toca bem esse som!”, entre outras frases soltas.

A admiração pela produção artística infantil não é novidade e nem pode ser leviana. Ela está presente em diversos estudos, pesquisas de áreas diversas e nos olhares de tantas famílias. Às vezes, essas criações têm um valor inestimável, quando são de nossos filhos. E são efêmeras, quando são dos outros.

Vale nos questionar: qual a trajetória que fez com que tantas respostas criativas emanassem de tantas cores, formas, gestos, sons e ideias dos pequenos no decorrer de sua jornada dentro e fora da escola? Será que é um dom ou um processo educativo estruturado? 

É conhecido, no meio acadêmico, que as crianças percebem seu entorno e tendem a apresentá-lo a quem se encontra em suas vidas. Nesse representar do mundo, códigos são absorvidos, demonstrados e identificados e todos daquele grupo social (família, comunidade escolar, etc.) conseguem atribuir um processo de comunicação através dos signos visuais apresentados nas produções, sejam elas desenhos, pinturas, movimentos corporais ou sonoros. Quando não entendemos, cabe a nós buscar decodificá-lo, aprender e refletir. Quantas vezes nos deparamos com palavras que não conhecemos e buscamos “traduções”? O mesmo deveria ocorrer com a Arte e seus textos visuais, corporais e sonoros. 

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É, através dessa pesquisa, desse querer aprender a aprender, que percebemos o quanto a compreensão sobre a cultura em que vivemos, expressada nesse texto especificamente através das linguagens artísticas e na qual outros também vivem nas suas diferenças, é rica, comunicativa e muito criativa. 

Quando as pessoas para quais as crianças apresentam suas ideias artísticas não compreendem seus signos, representados através das garatujas, rabiscos, misturas de cores gestuais ou do faz de conta corporal, torna-se nítido para os envolvidos que o diálogo não está acontecendo. 

Ao participarmos das rotinas e validarmos as descobertas de nossos pequenos, nós estamos consolidando suas existências. E as de seus aprendizados. Educar não é simples e exige persistência. Neste ato de validar e educar, podemos perceber o quanto há de história e memória numa produção artística. Seja infantil ou não; tudo é processo e tudo vira bagagem de vida.

Seja uma escultura ou pintura; colagem ou desenho; carimbo ou som ou ação, nada é apenas isso. Ali tem muito aprendizado coletivo no interagir com as ferramentas que foram as mais primitivas tecnologias usadas pelo ser humano. E que segue inovando. Uma produção artística não é apenas se “melar”, “sujar”, “fazer arte”. É também nomear, catalogar, exercitar as musculaturas que serão importantes no pegar, levantar, equilibrar, registrar, etc. Pegar com os dedos, amassar, decidir afundar ou levantar, escolher. Nunca é só uma arte. É a experiência da infância e é lá que está a arte. Nos detalhes.

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